Trabalhos escritos realizados no âmbito do Mestrado em
Teatro e Comunidade
ESCOLA SUPERIOR DE TEATRO E CINEMA
ESTC | Ano Lectivo 11/12 |
Joana Mealha Santos|
Teatro e Comunidade I | Nº 1101043 |
Redigido entre 30/06/11 e 24/07/11
Psique, Política, Teatro, Comunidade e Psique
RESUMO O teatro só passou a ser uma questão artística a partir do realismo. Antes - bem entendido, na Grécia Clássica – foi exercício político: tornar a cidade melhor. Hoje, perante uma crise social, o paradigma de Teatro e Comunidade, alarga-se e podemos estar a retornar à questão básica, prática e política, sobre o modo correcto de viver. Tendo como guia o pensamento de Andrew Samuels em The Political Psyche pretende-se demonstrar que é através do afecto que se criam sentidos comuns. As pessoas enviam mensagens verbais e não-verbais que podem ser recebidas e descodificas também em contexto mais social. É um significado não estrutural mas afectivo de arquétipo que nos coloca num mundo vivido no qual todos temos a capacidade para experimentar afectos de uma espécie muito poderosa e profunda. O afecto encarnado está assim no centro da vida humana e, de lá, liga-nos à comunidade, através da política que os moldou, aos afectos, em primeiro lugar. Tudo tem capacidade ou potencial para estimular um nível arquetípico de excitamento emocional em nós. Os arquétipos estão no olhar do observador quando este entra em contacto com a vida, não são algo interior ou exterior mas mais plural e mais criteriosamente holístico, abordagens difíceis de manter mentalmente mas mais condicentes com a realidade onde não somos só moldados mas moldamos e construímos os relacionamentos e a cultura. Construímos a comunidade.
A Psique como Pano de Fundo
No prefácio da sua obra The Political Psyque, Samuels confessa-nos que foi por uma questão de consciência que escolheu o tema. O mundo onde vivemos possui elementos perturbadores: a não igualdade, o preconceito, a violência e a falta de vitalidade imaginativa.
O Teatro no seu berço, a Grécia Antiga, era exercício político: uma forma de tornar a
cidade melhor. Hoje o paradigma de Teatro e Comunidade abre espaço a uma potencialidade complexa, sem o admitir: tornar a comunidade melhor – uma actualização da anterior.
Samuels vem em nosso auxílio ao afirmar que existem processos de mudança política
não-violenta que se podem dar através da Psicologia Profunda (cf. p. 3; Samuels, 1993). No mundo moderno, as relações sociais somente adquirem relevo em função da identidade pessoal.
A erosão da esfera pública acarretou não um vazio, mas a invasão do seu espaço pelo que é do âmbito privado. Deixámos em grande parte de nos manifestar nas praças, no teatro, nos cafés.
Hoje tudo está delimitado para que a distância de segurança entre estranhos seja respeitada. Contudo, esta nossa sociedade procura usar o conhecimento acerca de si mesma, tornar-se consciente de si mesma: esforçando-se por se tornar psicológica (Samuels, 1993; cf. p. 8). É então um movimento natural fundamentarmo-nos na Psicologia Profunda, onde o insconsciente é tido em conta, para modelar actividades com a Comunidade, mais precisamente actividades teatrais.
Antecedentes Analíticos
Como resultado do aumento populacional, que acentuou a dicotomia das classes
matrimoniais e, consequentemente, a expansão da sua ordem exógama, os limites esmaeceram progressivamente e nada mais restou além do tabu do incesto. A ordem social primitiva foi dando lugar a outros factores de ordem que hoje culminam no Estado. Do mesmo modo que todo o passado pouco a pouco vai caindo no inconsciente, assim também a ordem social primitiva. Ela constitui um arquétipo que unificava da melhor forma possível a oposição entre a endogamia e a exogamia, posto que, em vez do casamento entre irmão e irmã que era proibido, ela instituía o
"cross-cousin-marriage‟. Este tipo de união realiza-se entre parentes ainda próximos o bastante para satisfazer de algum modo a tendência endógama, mas já suficientemente distantes para incluir outros grupos e promover a expansão coesa e ordenada da tribo. Mas ao passo que a tendência exógama abolia pouco a pouco os seus limites graças a uma dicotomia crescente, a tendência endógama tinha que fortalecer-se necessariamente, a fim de acentuar o parentesco e mantê-lo coeso. Semelhante reacção desenrolou-se principalmente no domínio religioso e depois também no político, dando no primeiro origem às comunidades de culto e confissões religiosas – como confrarias e a fraternidade cristã – no segundo, às nações. Com a interdependência internacional cada vez maior e o enfraquecimento das religiões, essas delimitações já se tornaram imprecisas ou superadas e sê-lo-ão ainda mais no futuro. Isso cria uma massa amorfa, cujos pródromos já são perceptíveis nos fenómenos modernos da psique das massas. A ordem exógama primitiva aproxima-se progressivamente do estado de caos, controlado com a maior dificuldade (Jung, 1971; cf. p. 221).
Na criação teatral comunitária, visto que cada indivíduo é um mundo, o triste paradoxo é que a vontade de ser optimista que um pedagogo teatral pode manifestar num dado grupo é precisamente o que o impede de encontrar a esperança que vem de sairmos da cena. Não ter qualquer opinião preconcebida, aceitar o que é dito tal como é dito permite transformações súbitas além do simplesmente lógico e previsível. Os sentidos comuns revelam-se afectivamente, através de um todo constituído por mensagens verbais e não-verbais habitando num contexto social.
Nas palavras de Jung (1971; pp. 67-68): “Ser normal é a meta ideal para os
fracassados e todos os que ainda se encontram abaixo do nível geral de ajustamento. Mas para as pessoas cuja capacidade é bem superior à do homem médio, pessoas que nunca tiveram dificuldade em alcançar sucessos e cujas realizações sempre foram mais do que satisfatórias, para estas, a idéia ou a obrigação moral de não ser mais do que normal, significa o próprio leito de Procusto, isto é, o tédio mortal, insuportável, um inferno estéril, sem esperança. Consequentemente, existem dois tipos de neuróticos: uns que adoecem porque são apenas normais e outros, que estão doentes porque não conseguem tornar-se normais. (...) É que o homem só se satisfaz e se realiza com aquilo que ainda não tem, da mesma forma que não é possível saciar-nos com aquilo de que já estamos fartos. Ser um ser social e ajustado não tem a menor graça para quem considera isso uma brincadeira. Andar na linha acaba tornando-se monótono para quem sempre foi correcto, ao passo que levar uma vida digna é o anseio inconfesso de quem nunca andou direito. As exigências e necessidades do homem não são iguais para todos. O que para uns é salvação, para outros é prisão. O mesmo acontece com a normalidade e o ajustamento. Há um preceito biológico que diz que um homem é um ser gregário e, portanto, só atinge a saúde plena enquanto ser social. No entanto, é possível que o primeiro caso que encontramos pela frente desminta frontalmente essa assertiva, provando-nos que ele só gozará de saúde plenamente, se levar uma vida anormal e anti-social. É de
desesperar que na psicologia verdadeira não existam normas ou preceitos universais. O que existe são apenas casos individuais e suas necessidades e exigências são as mais variadas possíveis – tão divergentes, que no fundo nunca se pode saber de antemão o rumo que vai tomar este ou aquele caso. O melhor que o médico pode fazer é renunciar a qualquer opinião preconcebida. Isso não quer dizer que tenhamos que desprezá-las, mas sim, usá-las como hipóteses para um possível esclarecimento do caso”.
A questão crucial colocada aqui por Jung: até que ponto posso eu encontrar esta pessoa como um ser humano único ou até que ponto devo reagir como um paciente típico, é na dimensão política sintetizada por Aristóteles na afirmação: “Semelhantes não constituem [o] Estado” (Giddens, 1991; pp. 181 – 5; cit. por Samuels, 1993; p. 8).
Do Indivíduo à Comunidade
A abordagem de Jung da psicologia desafiou a linha divisória observador/observado e
colocou em primeiro plano a subjetividade no processo de investigação. A teorização clínica actual sobre a contra-transferência do analista estende amplamente o estudo rigoroso de Jung da subjectividade, conduzindo ao possível uso de tal abordagem em relação às temáticas políticas e sociais (Samuels, 1993; cf. pp. 24-50).
As perspectivas individuais da realidade relacionam-se entre si através da descrição
abstracta do todo e o melhor que cada um pode fazer é adquirir conhecimento de todas as perspectivas possíveis e reconhecer que o conjunto é maior do que podemos perceber: “... cada um carrega a tocha do conhecimento por um certo trecho do percurso, só até entregá-la a outro. Se pudéssemos encarar esse processo por outro prisma que não o pessoal, se pudéssemos, por exemplo, supor que nós não somos os criadores pessoais da nossa verdade, mas os seus representantes, simples porta-vozes das necessidades psíquicas contemporâneas, muito veneno, muita amargura poderia ser evitada, e nosso olhar estaria desimpedido para ver as relações profundas e impessoais da alma da humanidade” (Jung, 1971; p.66).
Assim, é um significado não estrutural mas afectivo de arquétipo que nos coloca num
mundo vivido no qual todos temos a capacidade para experimentar afectos de uma espécie muito poderosa e profunda. O afecto encarnado está assim no centro da vida humana e, de lá, liga-nos à comunidade, através da política que os moldou, aos afectos, em primeiro lugar. Tudo tem capacidade ou potencial para estimular um nível arquetípico de excitamento emocional em nós. Os arquétipos estão no olhar do observador quando este entra em contacto com a vida, não são algo interior ou exterior mas mais plural e mais criteriosamente holístico, desafiando fronteiras convencionalmente aceites e não um holismo como mera reacção à perspectiva atomista; abordagens difíceis de manter mentalmente mas mais condicentes com a realidade onde não somos só moldados mas moldamos e construímos os relacionamentos e a cultura (Samuels, 1993; cf. pp. 24-50).
Para lidar e estar na comunidade é necessário tacto. Como nos avisa Samuels (1993; cf. p. 36) o problema começa a resistir a uma solução que não vem se si mesma. Construímos a comunidade conhecendo-a, dando-nos a conhecer, falando a sua linguagem mas também transformando gradualmente os seus ângulos iniciais de visão do mundo. Cooperamos com o que existe e a partir desse material mudamos todos. Assim, usamos a ténica e a lógica para permitir o espaço de vivência afectiva nascente e regenaradora e não tanto catártica ou de reabilitação.
Em relação à mera catarse podemos extrair das palavras de Jung (1971; p.66) o que é importante para o contexto de Teatro e Comunidade: “Geralmente não nos damos conta de que o médico que pratica o método catártico não é apenas uma idéia abstracta, automaticamente incapaz de produzir o que quer que seja além da catarse. Ele também é uma pessoas humana, que, embora pense limitadamente dentro da sua esfera, na acção expressa-se como homem total. Sem chamá-lo pelo nome e sem ter consciência clara a respeito, ele também faz, sem querer, todo um trabalho de elucidação e educação da mesma forma que os outros também contribuem para a catarse, sem por isso elevá-lo a um princípio”.
A integração emocional pode então suceder sem que tenha esse sido o nosso objectivo
inicial. O tacto para usar somente o necessário do que é metodológico permite o processo saudável. O que é demais pode ser prejudicial já que este organismo que é a comunidade contém um enorme potencial eléctrico e sem o cuidado pode manifestar-se um curto-circuito.
Esse curto-circuito é considerado por Jung (1971; cf. pp 172-173) oriundo da
considerável força dos conteúdos inconscientes e sempre sinal de fraqueza correlativa do consciente e das suas funções. É como se o consciente ameaçasse desfalecer. Semelhante perigo representa para o homem primitivo a fatalidade mágica das mais temidas. É perfeitamente compreensível que essa angústia secreta exista no homem de hoje. Nos casos graves é o medo secreto da doença mental e nos menos graves, o medo do inconsciente, que no homem comum se trai pelas sua resistência aos pontos de vista psicológicos. Para se ter alguma possibilidade de saída vitoriosa dessa guerra latente é necessário entabular conversações com o inimigo, a
fim de saber quais as suas condições.
Nestes casos fazer menos pode ser permitir muito mais pois, para que o indivíduo não
se perca na massa necessita de atravessar conscientemente o que pode parecer e é para o consciente: o caos. No fundo, em vez de trazer mais lenha para um fogo já ardente, desbloqueamos os canais criativos já cheios de elementos e esperando há muito tempo para fluirem e criarem circuitos vivos.
Uma Nova Definição de Política
Para Samuels (1993; cf. p. 337) tornou-se evidente que a política não pode ser descrita meramente como um fenómeno que advém da intersecção entre a realidade psíquica e social, mas também deve ser descrito como um fenómeno transpessoal e aponta, como muitas actividades transpessoais, na direcção espiritual. A Política, o Teatro-Comunidade, a Psicologia Profunda e a Religião partilham a mesma fantasia: fornecer terapia ao mundo, prevenção do que sabemos que na nossa História não parece ter ido no sentido que julgamos melhor.
Vemos nascer uma dimensão política do nível do sentir, mais pessoal: uma capacidade
para escolher livremente agir e como agir e que acção tomar numa dada situção, em contraste com a dimensão da manutensão do poder e do ganho de control sobre os outros.
Nunca se penetra em terras novas, sem correr certos riscos: pois nesse empreendimento, o pioneiro depende do equipamento que de facto traz consigo. A psicoterapia surgiu de métodos nascidos da prática e da improvisação (Jung, 1971; cf. p. 73) e foi evoluindo até se tornar além de uma prática, uma linguagem tão difundida que já faz parte do léxico comum e nos define como sociedade que se questiona a si mesma. Para o fazedor de Teatro e Comunidade trata-se não só da capacidade de escuta e ensino, de comunicação verbal e não-verbal, da sua cultura geral, da sua visão de mundo, e de tudo o que consciente ou não traz para o grupo.
Por uma Psique Renovada
Samules (1993; cf. p.9) considera que é deveras importante não deixar o estudo da
psique somente na mão dos clínicos para que os reducionismos psicológicos não sejam criados e recriados. Ele não pretende reduzir um campo a outro mas sim descobrir como podem cada um beneficiar do outro.
Quando entendemos que a força da psique é inseparável das pessoas, que em qualquer
actividade humana social ou não ela actua de forma oculta; mas quando entendemos igualmente que o Teatro, não só aquele que claramente se auto-denomina político, tem uma dimensão política nova oriunda de uma nova definição; e quando pousamos o nosso olhar na terra fértil do Teatro e Comunidade, vemos claramente que um novo paradigma começa a surgir: um modelo de sociedade onde a Psique é olhada de frente e tida em conta para solucionar um mundo que se fragmentou. O inconsciente torna-se nosso aliado.
O consciente humano poderá de forma mais confiante aceitar pontos de vista
psicológicos, que têm raízes em diversos campos do conhecimento mas que têm em conta a psique, sem se sentir perdido neles pois manterá uma conversação inteligente com os mesmos e não sendo aprisionado nem assustado, pode alargar a sua realidade.
Referências Bibliográficas
Jung, C. (1971). A Prática da Psicoterapia: Contribuições ao Problema da Psicoterapia e à
Psicologia da Transferência (trad. Maria Luiza Appy). Petrópolis: Vozes.
Samuels, A. (1993). The Political Psyque. NY: Routledge.
ESTC | Ano Lectivo 11/12 |
Joana Mealha dos Santos| Nº 1101043 |
Teatro e Comunidade II | 01/11/11
Pensamento Sensível: um pensamento que torna inteligíveis as sensações do mundo
Tomando como base o desenvolvimento humano Augusto Boal mostra-nos o ataque que
está a ser desenhado, uma verdadeira Invasão dos Cérebros, para atingir as populações através do primeiro tipo de pensamento existente, e que ele denomina de Pensamento Sensível. Este tipo de pensamento é a base de onde brota o Pensamento Simbólico, sendo a Palavra a interface entre os dois. Esta denominação deve a Alexander Baumgarten que ao dissertar sobre Estética chega ao conceito de Conhecimento Sensível intermediário entre a sensação pura e o intelecto: resultado de uma síntese particular entre a Coisa e o Pensamento Humano (cf. p. 25).
Nas palavras de Boal: “existe uma forma de pensar não-verbal (...) articulada e
resolutiva, que orienta o contínuo acto de conhecer e comanda a estruturação dinâmica do Conhecimento Sensível. (...) Para serem compreendidos, mesmo quando são expressos em palavras, os pensamentos dependem da forma como essas palavras são pronunciadas ou da sintaxe em que as frases são escritas – isto é, dependem do Pensamento Sensível” (p. 27).
Mais à frente no seu discurso Boal esclarece-nos um pouco mais integrando esta noção
com conceitos mais psicológicos: “O fluxo contínuo de nossas acções, que levam em conta e a cabo as informações do Conhecimento, são obra de um verdadeiro Pensamento Sensível, que orienta a dinâmica do Sujeito, traduzida em palavras ou não. A parte não consciente desse pensamento cumpre a mesma função e tem semelhantes virtudes. É o que Freud chamava, em seus primeiros escritos, de pré-consciente e Stanislawski, em seu método de interpretação do actor, de subtexto. Existem muitos níveis de pré-conscientes e subtextos simultâneos, entrelaçados; alguns, um dia, chegam à nossa consciência... outros jamais. Alguns traduzem-[se] em fala; outros, em silêncios” (p. 29).
A percepção da pura sensação só se realiza como tal no início da vida humana, pois a
partir daí, para que o ser sobreviva, este começa a reagir e a organizar os estímulos, principalmente, como prazerosos e dolorosos, úteis e não úteis. Não é feito um mero registo das novas informações com as já recebidas e hierarquizadas, com as carências e desejos do sujeito; progressivamente, as sensações, emoções e memórias a elas referentes organizam-se em sua interacção e conversão em actos, são pensamentos sem palavras (cf. pp. 26 e 60). Sendo que a intervenção coerciva ao pensamento humano está a ser feita a partir das nossas bases, tal resulta numa infantilização das pessoas.
Boal recorda-nos: “os sentidos têm sentido! Não são meras sensações que se apagam
com o tempo: têm sentido e direcções” (p. 27). O caos experimentado não se deve à realidade rica e complexa mas sim à manipulação da mesma tendo como objectivo a incapacitação da calma e ponderada tradução em palavras dessa mesma realidade; o que na espécie humana pede interlocutores adequados já que nos desenvolvemos socialmente. Sem tempo e espaço criado para a reflexão, a tentativa de dar nomes e criar raciocínios sobre a realidade no meio da poluição dos sentidos causa confusão. A realidade sendo múltipla traz a possibilidade de palavras e significados diferentes que necessitam de trabalho para serem elaborados e integrados sob pena de gerarem mais caos do que ordem.
No entanto, “o objecto do fenómeno estético pode, ou não, necessitar ser explicado para melhor ser fruído” (p. 26). Um exemplo claro da necessidade de explicação é o que diz respeito à violência, pois todo o estímulo sensorial violento obscurece qualquer forma de pensamento. Assim, sabemos que a violência na Grécia antiga não era gratuita apesar de se viver então num sistema coercivo que tinha por meta política acomodar as suas plateias ao conformismo social. A tragédia estimulava o pensamento e podia, como em Eurípedes, questionar a sociedade e seus valores: “Os protagonistas explicavam as razões de seus actos e admitiam seus erros – emoção
vinculada à razão. Nenhum sacrifício em vão. Na tragédia grega, a violência física realizava-[se] fora da cena (...) suas razões, essas sim, bailavam em cena diante das plateias, respeitadas como pessoas inteligentes, não como fanáticos espectadores de uma sangrenta luta de boxe tailandês” (pp. 149-150).
Já em Shakespeare é notória a violência que “chega a braços cortados e olhos furados,
mas nunca [é] desacompanhada de razões e pensamentos que permitam o contraditório. Não é a violência em si que causa irreparáveis danos neurológicos à hipnotizada plateia: é a carência de pensamentos e motivações para essas actividades físicas. A violência, em si mesma, não é boa nem má. Será má quando reduzida a socos e pontapés sem subjectividades; didáctica,quando reveladas suas causas e sua ética” (p. 150).
Actualmente, os media usam da estratégia do sensacionalismo que é precisamente não
revelar a subjectividade dos actos individuais que descrevem. Normalmente, a notícia é exactamente o despir das motivações e pensamentos que estariam na origem de determinadas acções que sem essa compreensão se tornam surpreendentes, cruas ou mesmo gratuitas. Habituamo-nos, assim, a viver num mundo que nos parece não ter lógica em acontecimentos demasiado importantes para serem ignorados, mas que acabam por ser relatados só pela sua realidade objectiva e factual, quase que observados com uma lupa míope que aumenta a nossa sensação de insegurança em vez de nos permitir conhecer verdadeiramente a existência.
É por isso natural que encontremos mais facilmente essa sensação de unidade interna
ao ler um romance onde as motivações e pensamentos dos personagens foram construídas com cuidado, tempo, dedicação. Cabe à arte voltar a mostrar o caminho à política, à justiça até ao jornalismo. Cabe à arte voltar a mostrar o que é verdadeira comunicação. Pelas transgressões que faz aos sistemas implementados cabe a ela permitir abrir caminhos esquecidos, propositadamente, e que nos devolverão a liberdade de pensar, que se baseia na fluidez e dinâmica do Pensamento Sensível muito antes da delimitação ou expansão dada pelas palavras do Pensamento Simbólico.
Não se defende aqui que o pensar é sobretudo sentir e que a sensibilidade é mais importante, mas algo mais fundamental: que o acto de pensar com palavras tem início nas sensações e que, sem elas, não existiria, embora delas se desprenda e se
autonomiza até à sua mais total abstracção (cf. p. 27).
Um pensamento só pode ser livre se maduro para tal não deve ser amputado pela
poluição sensorial. Pensar é organizar o conhecimento e transformá-lo em acção, que pode ser fala ou acto, sendo que a fala é um acto. Pensamento é acção que transforma o pensador, o interlocutor e a relação entre os dois; dois que podem ser a mesma pessoa (cf. p. 29).
Assim, um pensamento livre só pode ser produzido por um ser humano que não só se
molda ao exterior e à comunidade onde se insere mas molda e constrói os relacionamentos e a cultura porque é inconformista e actua a partir do desejo de transformar o mundo. Só o pensamento livre pode evoluir de um Pensamento Sensível ágil para um Pensamento Simbólico bem formado onde os afectos, bem reconhecidos mesmo que poderosos e profundos, não perturbam o raciocínio, mas alimentam-no permitindo a boa e verdadeira comunicação com os outros que se dá numa totalidade verbal e não-verbal. Quando tomamos contacto com a vida, se o nosso Pensamento Sensível for tido em conta, sensações de alienação deixarão de ter lugar e
sentidos comuns terão cada vez mais espaço para vingar, porque “somos capazes de falar um único pensamento contínuo enquanto outros, simultâneos, não chegam à nossa consciência verbal – escondidos, fluem no nosso monólogo interior. Se tenho diante de mim sete pessoas e falo com as sete, digo palavras escolhidas: este pensamento verbal flui consciente – com lapsos, é verdade, e falhas de memória! – enquanto outros seis, submersos e sem censura, dirigem-se a cada um dos (...) interlocutores, que a eles são sensíveis, quase sempre, de forma inconsciente – deixam, porém, suas marcas” (p. 29).
Temos a capacidade de ser livres, emancipados, auto-conscientes de forma solitária. “O cérebro físico está dividido em partes, mas é um só, só um, orgânico e organizado: Casa Sem Portas por onde se pode transitar, nada murado. Mesmo quando se cala o Pensamento Simbólico, o Pensamento Sensível está sempre activo, pensando até o impensável, como o infinito e a morte” (p. 28). Os sistemas com suas regras rígidas, como o neo-liberalismo, esses sim não podem viver sem a energia gerada pelo nosso caos geral em grande medida emocional, que nos deixa somente com nosso instinto predatório animal. “Nos animais, o conhecimento também leva à acção, mas de forma conclusiva, não mediada pela consciência. Nos humanos o pensamento pondera e dá aos seus possíveis actos valores morais ou éticos. Os actos humanos são éticos, segundo a moral vigente a cada momento, em cada lugar e circunstâncias” (p. 30). A
criança apenas sente e deseja e com o tempo, aprende tudo aquilo que a sua cultura lhe ensina, permite ou obriga – ou torna-se marginal. Depois disso pode tomar partido, eleger, decidir a partir de uma base de risco e não apenas escolher entre uma disponibilidade de opções que pode estar manipulada à partida. O processo já foi descrito atrás. Existe outra forma de lidar, de reagir e recriar o mundo. A chave: a preservação do contacto com o omnipresente Pensamento Sensível.
Referência Bibliográfica
Boal, Augusto (2008). A Estética do Oprimido (pp. 23-158). Rio de Janeiro: Funarte.
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