quinta-feira, junho 21, 2007

Abundância


As sociedades ditas “arcaicas” não produzem excedentes não porque são incapazes de o fazer, mas sim por isso não ser considerado, dentro das suas culturas, necessário para a sua sobrevivência. Todavia, uma primeira noção oriunda do séc. XX, é a de que nestas sociedades onde a economia é denominada de sobrevivência ou subsistência, o que significa que caçadores-recolectores fazem a manutenção da vida diária, não havendo um acumulo de riqueza – os excedentes – e nas quais as técnicas e culturas são pouco complexas, os seus membros “não vivem, mas sim sobrevivem”. É de notar que nesta perspectiva estas sociedade são consideradas tecnologicamente inferiores. Contudo, se se tiver em conta que as técnicas constituem uma série de soluções e estratégias para actuar e retirar do meio ecológico os recursos necessários, será verdade que estas sociedades têm pobreza de técnicas?
Os membros de tais sociedades não têm vindo a passar fome nem a sentir a falta de bens materiais. Tais factos levam-nos ao pensamento de que a riqueza é a consciência da abundância e a pobreza é a consciência da falta. O ser humano é tão rico ou tão pobre quanto acredita ser e estas sociedades crêem-se verdadeiramente ricas. No entanto, olhando para elas alguém que tenha uma noção de riqueza diferente poderá igualmente considerar “a sua existência um combate interminável contra a fome”. Mas imaginemos que uma sociedade “arcaica” é influenciada por uma sociedade industrial, ou por alguns dos seus membros; o relato das consequências de tal evento poderia assemelhar-se ao seguinte: “... aquelas pessoas tinham perdido a aptidão para viver. Demasiado fracas e doentes para lutar, empenhavam-se em reduzir a sua actividade e as suas necessidades, e procuravam o estado de torpor, que requeria delas um mínimo de desgaste físico, ao mesmo tempo que atenuava a consciência da sua miséria.” Todavia, existe uma segunda noção, de Marshall Sehlins, que as considera as primeiras sociedades da abundância. Afinal, é no seu seio que existe abundância de lazer, afectividade, convívio social e partilha de recursos, já que o ritmo da vida se desenrola de modo equilibrado com horas de trabalho reduzido e muitas de ócio, e havendo uma recusa do excesso inútil de actividade, que poderia influenciar negativamente a harmonia da sociedade. Assim, não há coersão através de um poder político, mas sim uma política de vida. Deste modo, verifica-se que nas sociedades industriais para se sobreviver é se obrigado a um esforço incrivelmente maior do que o despendido nas chamadas sociedades “primitivas”, pois não há uma partilha total de actividades, conhecimentos e recursos, é tudo mais dividido, individualizado, específico. O que não invalida que, de uma ponta à outra da evolução humana, a sabedoria em relação à dádiva tenha sido sempre a mesma: “sair de si, dar, livre e obrigatoriamente”. Se bem que, umas vezes, esta esteja inserida nas sociedades de forma mais oculta e quase inconsciente e, noutras, mais explícita e ligada ao sagrado. Assim diz um provérbio maori: “Ko Maru Kai atu/ Ko Marua Kai mai/ Ka ngohe ngohe” (tradução literal: “Tanto quanto Maru – Deus da Guerra e da Justiça – der, tanto Maru receberá, e isto está bem, bem”, que numa tradução livre significará: “Dá tanto quanto receberes e tudo estará bem”).
Seguindo a mesma linha de pensamento, pode concluir-se que, apesar do etnocentrismo ser uma constante, pois cada sociedade considera-se a ela mesma como excelente, falar de graus de complexidade civilizacional faz sentido. Assim sendo, a habilidade tecnológica de uma em relação a outra não se considera como inferior, mas sim contendo uma outra superioridade, uma superioridade diferente. Deste modo, em vez de se admitir os triunfos sociais como comparáveis, o que subentende superioridade da parte do observador, poder-se-á considerá-los como equivalentes. Isto porque cada grupo étnico trouxe, enquanto tal, contribuições específicas para o património comum, sendo que cada um é desigual em valor absoluto e diverso nas suas aptidões particulares. Assim, a diversidade das culturas humanas deve induzir a uma observação totalitária, pois ela é mais função das relações que unem os grupos que do isolamento entre eles. Para explicar, contudo, estas diferenças poderemos dizer que as sociedades humanas utilizam desigualmente o tempo. Umas acelerariam a fundo, enquanto as outras divagariam ao longo do caminho. Desta forma, seríamos conduzidos a distinguir duas espécies de histórias: a progressiva, aquisitiva, que acumula achados e invenção para construir grandes civilizações; e outra igualmente activa e empregando outros talentos, mas a que faltasse o dom sintético, sendo que cada inovação se dissolveria numa espécie de fluxo ondulante que não se afastaria há muito da origem.
Assim, tendo em conta que a civilização ocidental se tem voltado inteiramente, desde há uns dois ou três séculos, no sentido de pôr à disposição do homem meios mecânicos cada vez mais complexos e poderosos, e adoptando este critério como expressão do grau de desenvolvimento das sociedades humanas, então seremos obrigados a admitir que a civilização ocidental, sob a forma norte-americana tomará o lugar de chefia, seguida das sociedades europeias, que arrastam atrás de si uma massa de sociedades asiáticas e africanas, que rapidamente se tornarão indiferenciadas. Mas, se o critério adoptado tivesse sido o grau de aptidão para triunfar nos meios geográficos mais hostis, não haveria qualquer dúvida de que os inuit, por um lado, e os beduínos, por outro, ganhariam a corrida. De outra forma, o oriente apresenta imensos conhecimentos de como governar e utilizar os recursos da máquina suprema que é o corpo humano e as relações entre o físico e a moral: produziram essas vastas acumulações teóricas e práticas que são o ioga na Índia, as técnicas de sopro chinesas ou a ginástica visceral dos antigos maori. Por fim, se se tiver em conta a riqueza e a audácia de invenção estética dos melanésios, o seu talento para integrar na vida social os produtos mais obscuros da actividade inconsciente do espírito, verificar-se-á que estes constituem um dos cumes altos que os homens alguma vez atingiram nesse sentido. Todavia, estes elementos têm menos importância que a maneira como cada cultura os agrupa, os retém, ou os exclui. A originalidade de cada uma está mais nas relações que estabelece entre elementos, ou seja, na maneira particular como resolvem os seus problemas e perspectivam valores que são aproximadamente os mesmos para todos os homens, porque todos possuem: linguagem, técnicas, arte, conhecimentos, crenças religiosas, organização social, económica e política. Visto que a concentração não é exactamente a mesma em cada cultura, cada vez é mais importante desvendar as origens secretas destas opções, do que traçar um inventário de características diferentes.
Deste modo, verificamos que há uma certa estrutura e equilíbrio subjacente a cada forma socio-cultural específica, apesar de existir sempre espaço para o seu desenvolvimento. Se é verdade que a comparação num pequeno número de sociedades as faz surgir como muito diferentes entre si, essas diferenças atenuam-se quando o campo de investigação se alarga. Descobre-se, então, que nenhuma sociedade é fundamentalmente boa; nem, também, absolutamente má. Todas oferecem certas vantagens aos seus membros, tendo em conta um resíduo de crueldades cuja importância parece aproximadamente constante e que talvez corresponda a uma inércia específica que se opõe, na planeada vida social, aos esforços para a organização.
Mas, e se um ser humano passar quase a totalidade do seu dia a trabalhar para sobreviver, onde sobrará o tempo para cantar? Não será então uma verdadeira sociedade da abundância aquela que permite esse espaço de lazer e segurança de vida?


Lévi-Strauss, C. (2003). Raça e História (7ª ed.). Lisboa: Editorial Presença.

Lévi-Strauss, C. (2004). Tristes Trópicos. Lisboa: Edições 70.

Mauss, M. (2001). Ensaio sobre a Dádiva. Lisboa: Edições 70 Lisboa.

terça-feira, junho 19, 2007

Mundos Anversos

(texto com o qual concorri ao 1º Concurso Literário da FCPE-UL)


O coração é um orgão de emissão e recepção. Tal como todos os corações de todos os átomos e partes do corpo o são. O coração é afinal o centro que existe em tudo mas que também se pode calcular a partir de uma qualquer configuração dada. Existem, e não existem, uma infinidade de corações e, no entanto, só há um, sem que os outros sejam eliminados ou ingeridos por este...

O próprio corpo de uma pessoa, com seus sinais, linhas e contornos diz tudo ao coração, e cada vez mais à mente conforme o seu grau de descontracção. No coração reside a razão de tais elementos: eles existem para nos reconhecermos uns aos outros e nada mais, não definem à partida o que quer que seja, somente o reencontro com parceiros, irmãos, companheiros de caminhada. Depois do propósito consumado os sinais até se podem modificar para chamar a atenção de outrém e ficamos então invisíveis para outros...

Madalena era uma jovem entusiástica, de estatura média mas olhos grandes, por onde a vida lhe entrava, saindo através de doces palavras proferidas por uma boca muito equilibrada em tamanho, semelhante a um botão de rosa, cheio de potencialidades. Ela existia para conviver, noção concretizada pela sua forma de expressão principal, o falar, e pelo facto de habitar os seus dias em grande comunhão com os outros. Vivia com os outros e para os outros, a partir de uma elasticidade axial: desde a família, onde era a única rapariga entre nove irmãos, até à escola, que agora ajudava a manter com o seu primeiro ofício de professora primária, e passando pelos momentos de menos definição, quando, por exemplo, ao passar pela praça central da localidade onde vivia, conversava espontaneamente com alguém novo cada dia.

Cristiano um jovem esguio, reservado mas muito observador, tão atento que olhar, durante a tarde, para as pessoas que circulavam na praça central de Gilmune – uma vila deste planeta onde a lua parecia demorar mais tempo em quarto crescente do que em qualquer outro lugar do mundo – era o seu passatempo preferido. Era filho único e vivia com os pais apesar de ter a possibilidade económica de viver individualmente, pois desde os catorze anos, agora tinha mais nove, que auxiliava num laboratório, primeiro de forma voluntária e a partir dos dezasseis de forma remunerada, e mostrava-se muitíssimo competente e incansável. Em casa tinham-lhe oferecido um microscópio e uma enciclopédia geral ilustrada, que depois desse trabalho (que ele havia sózinho procurado pois tinha encontrado a noção “laboratório” no tal livro) jantava e voltava a mergulhar ora na leitura, ora nas preparações para visualizar microscopicamente.

Sabe-se por vivência que a única forma de qualquer história, religião, cultura, tentativa de verdade, continuar pura e sagrada é ela só poder ser o que nos dizem ser, se validada pelo nosso coração, se vivida por nós através da nossa experiência. Por isso, não foi porque a pressão social dissesse a Cristiano que estava na altura, agora, de viver só e talvez namorar, que ele ía transformar o sucesso calmo, que era a sua vida, numa confusão, por hipótese, não tão bem sucedida, pois havia lido que o número de divórcios aumentava a cada ano. Ele tinha mesmo chegado a perceber ao longo das suas investigações literárias que o Homem ao longo dos tempos tinha começado a competir com tudo, e particularmente com a Natureza (a partir, inicialmente, da secularização do lavor humano, da domesticação do fogo e da descoberta da agricultura), retirando o elemento sagrado da vida quotidiana e permitindo a doença mental, até então menos comum, concluía. Mas o que sentia como mais grave era que o tempo tinha deixado de ser mágico, elástico, eterno ou simplesmente o necessário em cada momento, para passar a nunca chegar para o que se pensava necessitar: mais, melhor, progresso, desenvolvimento, evolução... Cristiano sentia-se, na sua vida, satisfeito e por isso acreditava que tinha restaurado, em si, algo desse tempo primordial e era-lhe muito fácil não ceder às pressões sociais. Possuia uma enorme crença naquilo que pensava ser a verdadeira disponibilidade humana, que só (re)apareceria com a calmia, com o gosto pelo que se faz e com a simplicidade de vida.

Um dia, depois da hora do almoço (só trabalhava de manhã porque se levantava de madrugada e perfazia o horário de trabalho às treze horas), estando a observar o movimento central da vila, eis que depara com uma cara nova para ele. Seria possível que nunca a tivesse visto? Seria nova em Gilmune? Ou seria a irmã dos nove compinchas de escola que tinha ido estudar para a capital e só voltara neste ano? Se fosse ela estava deveras mais brilhante, pensava. Sentiu-se agitado, e aquela mulher trouxe-lhe desejo de aproximação, sendo que durante o serão dessa noite não conseguiu ler nem olhar para preparações, mas só pensou no que também o ser humano tinha de mistérios e interesse. Como teria ele ignorado tal coisa? Talvez porque estivesse tão perto quotidianamente dos seus companheiros de espécie. Talvez porque era uma mulher do que se tratava e a sociedade tinha razão, o relógio biológico impelia-o para esse interesse. Não sabia. Mas aquela pessoa havia retirado Cristiano do seu sossego habitual. E isto só porque se tinha ausentado cinco anos e agora voltara? – indagou interiormente. Naquele momento, ao simular mentalmente uma conversa com ela, apercebeu-se da sua vergonha. Como nunca havia percebido que era tímido? Ou seria só do momento? Na verdade na sua auto-imagem considerava-se respeitoso, eficiente e educado, mas tais qualidades não pareciam suficientes para este “trabalho”.

Ficou acordado naquela noite a tentar elaborar sobre o que, afinal, queria da vida, o que iria fazer agora que o seu eterno momento tinha sido perturbado. Pensou, durante todo o percurso da lua crescente até que esta deu lugar ao sol, e só conseguiu concluir que teria que ir em busca do seu silêncio interno para não adoecer. Todavia continuava sem saber como... Mas tinha a certeza de algo, não conseguiria falar directamente com ela, para já... Talvez escrever uma carta. Mas teria que revelar o seu nome e isso era igual, ou pior, que falar a viva voz pois estaria a demonstrar a insegurança que sentia, e isso era imperdoável num homem de equilíbrio, muito extenso nas suas vertentes, muito consistente em cada conteúdo e muito próprio de si, como tinha vindo a ser até então.

No final desse dia, mesmo sem a ter vislumbrado na praça, e apesar da manhã ter sido árdua devido ao sono – a partir de agora, pensava, eterno – resolveu escrever, mas... virtual e anonimamente. Enviou-lhe um email, a partir de um endereço construído para esse efeito: anonimo@..., pois encontrou a morada electrónica e uma fotografia de Madalena no site da única escola da vila, onde ela leccionava. Agora tinha a certeza de que se tratava da maria-rapaz – como não podia deixar de ser, com aquela quantidade de irmãos – que tinha partido outrora e voltava, agora, uma mulher! Teria ele também se modificado tanto? Sentia-se o “mesmo”, pelo menos...
Como a sua paz estava cada vez mais diminuta as palavras saíram-lhe desconexas e demasiado complexas para uma primeira abordagem, mas prosseguiu na tentativa. O resultado segue-se:

“Querida Madalena,

Devaneios: coisas que passam muito acima de qualquer mortal, é isso que estou a passar contigo. A prima dona das alturas e o homo virtuous, no triângulo sustentável da sua concepção, desceram do Hades ao inferno da lógica dos elementos da física e da matemática, onde a estrela de Romeu e Julieta jaz. Onde o fogo, a luz que fogo é, e o azul do mar ou do céu, não são mais os mesmos que outrora faziam morrer e rejuvenescer. Ao acordar, agora, apenas de um momento entre olhares ténues, ao acordar apenas da ternura imaginada, Vénus terá concebido todos as possibilidades maternais que agora vejo em ti. Percebo-te como a completa grega dentro da matriz sapiens sapiens.
A ironia do momento é esta: a mitologia grega representará o espectro fulcral e evidente de todas as religiões, a estatura de um Deus e de um mortal como tu? Perante isto deixei de saber o que é o Universo... Ajudar-me-ás a encontrar de novo a resposta? Anónimo”.

Depois de enviada a mensagem, mais que espontânea e espelho do seu interior, conseguiu finalmente adormecer, não se sabe se de alívio, descontracção ou extremo cansaço. Acordou às quatro horas da manhã, como o costume o habituara, e o seu corpo automatizado nesse quotidiano construtivo e envolvente levou-o até ao laboratório, apenas depois de um espectacular pequeno-almoço, pois a fome era muita. Parecia que estava a reconstruir-se uma vez mais, pois tinha notado que de tempos a tempos tal transformação tinha um ápice e o indivíduo colocava o seu passo habitual em terreno completamente novo. Caminhou e o percurso, se bem que igual, assemelhava-se a território desconhecido... Concentrou-se nas tarefas a desempenhar, e desta vez sentiu-se no momento e no espaço onde o seu corpo se encontrava. Como tinha sido bom manifestar, de alguma forma, os seus sentimentos! Agora entendia que talvez ele próprio não tivesse sido sempre o “mesmo” afinal! Talvez o que acontecia é que nos habituávamos a ser os “mesmos” e bastava um elemento novo exterior, que se liga a uma nova percepção interior, para se sentir que a única constância na vida é a mudança! A sua atenção estava agora focada em si mesmo e nesse sussurar de movimento. Conseguia, de algum modo, cheirá-lo, ouvi-lo e entendia que essa dança interior sempre lá estivera e que constituia a própria sensação de segurança. Quando o seu corpo deixasse de mover pereceria, pensou.

Inundado por um enorme sentimento de vida, saiu do laboratório às treze horas e começou a caminhar no sentido do centro daquele território agora novo e observou os rostos, que também lhe pareceram diferentes. Não sabia de onde tinha surgido a diferença, se de ontem para hoje, se de dentro para fora ou de fora para dentro, mas a novidade e o espanto estavam lá, e talvez, começava a inferir, tivessem surgido simplesmemente da ligação entre interior e exterior. A sua atenção tinha-se concentrado desde ontem nele mesmo e nela, na sua possível ligação, e de repente, o mundo, já não era ele a construí-lo, mas uma esfera em constante relação! Como não tinha sentido isso antes?

O que mais desejava naquele dia era vê-la, e aperceber-se do efeito daquele virús da novidade na sua pessoa, no seu mundo, enfim, na sua percepção da vida. De certo estaria mudada pelo facto de alguém a amar... De certo estaria algo feliz... De certo estaria aberta à nova relação... Tinha que ser assim pois tinha sido sincero... o mais verdadeiro e igual a si mesmo que tinha conseguido ser, a braços com a nova situação de vida, que lhe tinha removido e acrescentado elementos, e, por fim, sintetizado uma nova pessoa ao acordar.

Chegou à praça e sentou-se num degrau perto da Igreja Matriz da vila de Gilmune, já que daí podia observar quem passava e, ao mesmo tempo, sentir o sol naquilo que da sua pele estava a descoberto. Viu crianças em brincadeiras, mulheres em correria, casais enamorados e outros a discutir, homens solitários... e eis que os seus olhos se cruzaram com os de Madalena! Só a viu já estava quase no fim da sua travessia por aquele lugar, já que ía muito velozmente e andava de cabeça baixa, sem sorrir nem procurar alguém novo para conhecer. Estava fechada e o brilho que causara em Cristiano toda a mudança súbita dos últimos dias não estava lá... Que sucedera? Teria sido ele o causador de tal enclausuramento?... Não era possível! Tinha sido tão honesto... Devia ter sucedido algo. Talvez até nem tivesse lido a mensagem electrónica.

Passado um minuto deixara de a ver, mas essa rápida interacção deixou-o perturbado, mas desta vez através de um sentimento diametralmente oposto ao do primeiro dia... Sentia-se infeliz, assustado e um pouco culpado. E se tivesse sido ele mesmo a roubar o esplendor a uma mulher que sem o ter seria metade do que podia valer como ser humano? Talvez a sua falta de prática na matéria tivesse produzido um erro crasso que desconhecia por completo e do qual só podia suspeitar...

Ficou no mesmo lugar durante quatro horas, poder-se-ia dizer que sem pestanejar, tal era a intensidade da vida interior que lhe retirava a presença do lugar físico onde se encontrava. Estava perdido. Tinha estado antes sem rumo, quando a avistara, mas encontrara-se e agora retornara à perdição. E era muito pior ter encontrado uma paz infinitamente maior do que a que sempre conhecera, e perdê-la, do que nunca a ter conhecido e julgar-se viver na melhor das circunstâncias. Levantou-se quando percebeu que iria ficar ali para sempre se não se retirasse pela vontade para outro local, e movimentou-se com o mínimo de vida que se pode imaginar num ser, com um olhar alienado. O seu corpo dirigiu-se para o seu lar enquanto a sua mente ficou presa ao momento em que vira o rosto da tristeza naquela que um dia brilhara.

Madalena, nesse dia, tinha acordado cheia de vigor e tão cedo que logo sentira vontade de começar a vivência. Como tinha tempo e já havia comido algo foi ver o seu email, não fosse algum pai ou aluno aflito precisar do seu auxílio. Olhou para a caixa de correio e viu uma nova mensagem, bastante recente pois era, imagine-se, do dia anterior... aliás, da noite anterior. Alguém estava a precisar urgentemente dela pois tinha produzido o texto de madrugada... e por isso não estava lá na noite prévia quando tinha ido ver se algo novo havia no seu correio electrónico. Se alguém necessitava de si estava aberta a isso, mas não deixava de ser estranho a mensagem não ter título e ter sido redigida tão tarde... Abriu-a. Leu e desde logo apercebeu-se que o conteúdo não era escolar, nem profissional, mas tratava-se deveras de um pedido de auxílio, muito semelhante àqueles que havia conhecido quando estudara em Lisboa e que alguns professores e colegas lhe dirigiram, exactamente assim, anónima e virtualmente... Que tristeza! O mundo estava mudado até em Gilmune onde pensava que as mentes eram mais transparentes e sãs, o assédio continuava. Que era aquilo, queriam torná-la uma louca! Porque não davam a cara, falando de coração aberto, de olhos abertos, de sorriso largo, com timidez ou com falsa segurança? Não se importaria de certo. Mas assim... não dizer quem se é para que o outro pense que é seguido por alguém omnipotente, omnisciente, quase um Deus pois não seria possível detectá-lo... Isso era injusto, desumano, nem sequer relacional!

Apeteceu-lhe gritar, dizer que já não confiava em ninguém, que não sentia o sabor da amizade pois algo dúbio corria no interior das pesssoas e uma perseguição tendo-a como alvo estava a ser feita. Como tinha sofrido em Lisboa por ser bela e ingénua, como tinha sentido a crueldade recair sobre os que não são cínicos e se dão com tudo o que são. Necessitava escrever e por isso pegou numa caneta e num diário que só utilizava em alturas de crise e onde estava descrito tudo o que nos seus anos de faculdade havia vivido e sofrido. Continuou num tom semelhante pois em tudo era igual esta situação às outras:

“Necessito escrever... Aproveito estas folhas que foram iniciadas na faculdade e que esperava nunca mais usar para o efeito. Desilusão é o que estou a sentir. Tudo corria como num sonho desde que à minha terra natal regressei. A vila parecia-me ainda mais nobre do que na minha infância e adolescência. Que bom, agora podia comungar com as gentes, com a Natureza que se mostrava ainda mais verde do que antes, e especialmente com as crianças na escola onde comecei a dar aulas. Encontrei colegas doces, comunicativas e abertas. Comecei de novo a confiar, sem pressa mas alegremente. Em Gilmune muita (re)descoberta de mim, dos outros, da vida aconteceu e estava até agora radiante por isso! Neste momento mal falo com os meus conhecidos de Lisboa, mas apesar de tudo a dor parece ter-se transportado de lá, onde estava enterrada, para aqui, com uma velocidade incrível, diria mesmo sobrenatural... O meu estado de espírito é por isso de tristeza, medo, arrependimento, raiva, culpa, desespero, carência e saudades, muitas, da minha vida, não sei bem qual, mas de uma vida com amor. Uma vida com menos rótulos, menos agitação, menos pessoas, menos confusão e mais ternura, incluindo por mim mesma. O mais triste é que penso que esse amor-próprio estava a desenvolver-se em mim e hoje ao tomar contacto com a prova de que aqui não é tão diferente, perdi tudo e estou sem vontade de continuar. Neste momento até o meu quarto de estudante me parece mais acolhedor, pelo menos aí estava só. Era uma divisão quadrada, pequena e fria, mas era conhecida e minha posse.
Fui sempre popular mas tive poucas relações íntimas e viver com os meus queridos irmãos foi divertido mas, como me identificava muito com eles, quase esqueci que era mulher e tomei contacto com o feminino já tarde na minha vida e quando estava só no meio de pessoas desconhecidas, em Lisboa. Percebi que era mulher quando os homens colocaram o olhar sobre mim para logo pegarem na minha mão e convidarem-me para aventuras diferentes daquilo que alguma vez tinha fantasiado viver. Como disse esquecera-me de pensar, de idealizar, de sonhar com o meu futuro como mulher, e por isso no meu futuro de relação com o sexo oposto. Julgo que foi por isso que fui apanhada de surpresa. Mas apesar de tudo estava aberta e sinto hoje que a vida se aproveitou de mim e não esperou pelo meu próprio ritmo! Nestes poucos meses, antes de começar o ano lectivo, consegui sentir esse desejo de partilha com um homem, alguém que me deixasse descansar, que unisse os retalhos de algo que já foi mas que são imprescindíveis para continuar. A única coisa que sei é que não quero falsidade e ocultações mas sim doçura e autenticidade. No fundo, quero escutar dos outros aquilo que são, e tinha vindo a fazê-lo na praça, mas já nem sei se hoje vou conseguir a disponibilidade para a novidade... Que ferida é esta que quer abrir todos os dias, para que servirá o sofrimento de alguém que não quer viver no mundo que percebe? Está tudo comigo, está tudo em todo o lado. Eu transporto o sofrimento ou pelo menos o caminho para ele... Estou num labirinto. Será que neste mundo haverá lugar para a excelência humana alguma vez?”

Foi nesta esfera de pensametos, imagens, recordações e sentimentos que Madalena habitou nesse dia. Foi essa esfera que provocou a sua expressão de desamparo, aquela que foi notada por Cristiano e que o fez sentir-se, além de perdido, desorganizado, sujo, marginal, agitado, hipersensível, feio e sem criatividade.

10.03.06