quinta-feira, junho 21, 2007

Abundância


As sociedades ditas “arcaicas” não produzem excedentes não porque são incapazes de o fazer, mas sim por isso não ser considerado, dentro das suas culturas, necessário para a sua sobrevivência. Todavia, uma primeira noção oriunda do séc. XX, é a de que nestas sociedades onde a economia é denominada de sobrevivência ou subsistência, o que significa que caçadores-recolectores fazem a manutenção da vida diária, não havendo um acumulo de riqueza – os excedentes – e nas quais as técnicas e culturas são pouco complexas, os seus membros “não vivem, mas sim sobrevivem”. É de notar que nesta perspectiva estas sociedade são consideradas tecnologicamente inferiores. Contudo, se se tiver em conta que as técnicas constituem uma série de soluções e estratégias para actuar e retirar do meio ecológico os recursos necessários, será verdade que estas sociedades têm pobreza de técnicas?
Os membros de tais sociedades não têm vindo a passar fome nem a sentir a falta de bens materiais. Tais factos levam-nos ao pensamento de que a riqueza é a consciência da abundância e a pobreza é a consciência da falta. O ser humano é tão rico ou tão pobre quanto acredita ser e estas sociedades crêem-se verdadeiramente ricas. No entanto, olhando para elas alguém que tenha uma noção de riqueza diferente poderá igualmente considerar “a sua existência um combate interminável contra a fome”. Mas imaginemos que uma sociedade “arcaica” é influenciada por uma sociedade industrial, ou por alguns dos seus membros; o relato das consequências de tal evento poderia assemelhar-se ao seguinte: “... aquelas pessoas tinham perdido a aptidão para viver. Demasiado fracas e doentes para lutar, empenhavam-se em reduzir a sua actividade e as suas necessidades, e procuravam o estado de torpor, que requeria delas um mínimo de desgaste físico, ao mesmo tempo que atenuava a consciência da sua miséria.” Todavia, existe uma segunda noção, de Marshall Sehlins, que as considera as primeiras sociedades da abundância. Afinal, é no seu seio que existe abundância de lazer, afectividade, convívio social e partilha de recursos, já que o ritmo da vida se desenrola de modo equilibrado com horas de trabalho reduzido e muitas de ócio, e havendo uma recusa do excesso inútil de actividade, que poderia influenciar negativamente a harmonia da sociedade. Assim, não há coersão através de um poder político, mas sim uma política de vida. Deste modo, verifica-se que nas sociedades industriais para se sobreviver é se obrigado a um esforço incrivelmente maior do que o despendido nas chamadas sociedades “primitivas”, pois não há uma partilha total de actividades, conhecimentos e recursos, é tudo mais dividido, individualizado, específico. O que não invalida que, de uma ponta à outra da evolução humana, a sabedoria em relação à dádiva tenha sido sempre a mesma: “sair de si, dar, livre e obrigatoriamente”. Se bem que, umas vezes, esta esteja inserida nas sociedades de forma mais oculta e quase inconsciente e, noutras, mais explícita e ligada ao sagrado. Assim diz um provérbio maori: “Ko Maru Kai atu/ Ko Marua Kai mai/ Ka ngohe ngohe” (tradução literal: “Tanto quanto Maru – Deus da Guerra e da Justiça – der, tanto Maru receberá, e isto está bem, bem”, que numa tradução livre significará: “Dá tanto quanto receberes e tudo estará bem”).
Seguindo a mesma linha de pensamento, pode concluir-se que, apesar do etnocentrismo ser uma constante, pois cada sociedade considera-se a ela mesma como excelente, falar de graus de complexidade civilizacional faz sentido. Assim sendo, a habilidade tecnológica de uma em relação a outra não se considera como inferior, mas sim contendo uma outra superioridade, uma superioridade diferente. Deste modo, em vez de se admitir os triunfos sociais como comparáveis, o que subentende superioridade da parte do observador, poder-se-á considerá-los como equivalentes. Isto porque cada grupo étnico trouxe, enquanto tal, contribuições específicas para o património comum, sendo que cada um é desigual em valor absoluto e diverso nas suas aptidões particulares. Assim, a diversidade das culturas humanas deve induzir a uma observação totalitária, pois ela é mais função das relações que unem os grupos que do isolamento entre eles. Para explicar, contudo, estas diferenças poderemos dizer que as sociedades humanas utilizam desigualmente o tempo. Umas acelerariam a fundo, enquanto as outras divagariam ao longo do caminho. Desta forma, seríamos conduzidos a distinguir duas espécies de histórias: a progressiva, aquisitiva, que acumula achados e invenção para construir grandes civilizações; e outra igualmente activa e empregando outros talentos, mas a que faltasse o dom sintético, sendo que cada inovação se dissolveria numa espécie de fluxo ondulante que não se afastaria há muito da origem.
Assim, tendo em conta que a civilização ocidental se tem voltado inteiramente, desde há uns dois ou três séculos, no sentido de pôr à disposição do homem meios mecânicos cada vez mais complexos e poderosos, e adoptando este critério como expressão do grau de desenvolvimento das sociedades humanas, então seremos obrigados a admitir que a civilização ocidental, sob a forma norte-americana tomará o lugar de chefia, seguida das sociedades europeias, que arrastam atrás de si uma massa de sociedades asiáticas e africanas, que rapidamente se tornarão indiferenciadas. Mas, se o critério adoptado tivesse sido o grau de aptidão para triunfar nos meios geográficos mais hostis, não haveria qualquer dúvida de que os inuit, por um lado, e os beduínos, por outro, ganhariam a corrida. De outra forma, o oriente apresenta imensos conhecimentos de como governar e utilizar os recursos da máquina suprema que é o corpo humano e as relações entre o físico e a moral: produziram essas vastas acumulações teóricas e práticas que são o ioga na Índia, as técnicas de sopro chinesas ou a ginástica visceral dos antigos maori. Por fim, se se tiver em conta a riqueza e a audácia de invenção estética dos melanésios, o seu talento para integrar na vida social os produtos mais obscuros da actividade inconsciente do espírito, verificar-se-á que estes constituem um dos cumes altos que os homens alguma vez atingiram nesse sentido. Todavia, estes elementos têm menos importância que a maneira como cada cultura os agrupa, os retém, ou os exclui. A originalidade de cada uma está mais nas relações que estabelece entre elementos, ou seja, na maneira particular como resolvem os seus problemas e perspectivam valores que são aproximadamente os mesmos para todos os homens, porque todos possuem: linguagem, técnicas, arte, conhecimentos, crenças religiosas, organização social, económica e política. Visto que a concentração não é exactamente a mesma em cada cultura, cada vez é mais importante desvendar as origens secretas destas opções, do que traçar um inventário de características diferentes.
Deste modo, verificamos que há uma certa estrutura e equilíbrio subjacente a cada forma socio-cultural específica, apesar de existir sempre espaço para o seu desenvolvimento. Se é verdade que a comparação num pequeno número de sociedades as faz surgir como muito diferentes entre si, essas diferenças atenuam-se quando o campo de investigação se alarga. Descobre-se, então, que nenhuma sociedade é fundamentalmente boa; nem, também, absolutamente má. Todas oferecem certas vantagens aos seus membros, tendo em conta um resíduo de crueldades cuja importância parece aproximadamente constante e que talvez corresponda a uma inércia específica que se opõe, na planeada vida social, aos esforços para a organização.
Mas, e se um ser humano passar quase a totalidade do seu dia a trabalhar para sobreviver, onde sobrará o tempo para cantar? Não será então uma verdadeira sociedade da abundância aquela que permite esse espaço de lazer e segurança de vida?


Lévi-Strauss, C. (2003). Raça e História (7ª ed.). Lisboa: Editorial Presença.

Lévi-Strauss, C. (2004). Tristes Trópicos. Lisboa: Edições 70.

Mauss, M. (2001). Ensaio sobre a Dádiva. Lisboa: Edições 70 Lisboa.

2 comentários:

Anónimo disse...

Joana? :-)

Cristal disse...

Sim sou eu... Quem es?